Quem foi Clemente Quáglio?
Para ter uma ideia, reproduzimos abaixo os principais parágrafos do Boletim – Academia Paulista de Psicologia* intitulado:
Sobre Clemente Quaglio (1872-1948): notas de pesquisa Patrono da Cadeira nº 31 “Clemente Quaglio”
RESUMO
Notas de pesquisa sobre a obra científica do professor Clemente Quaglio, aqui considerado expoente do movimento pedológico brasileiro.
Clemente Quaglio nasceu em 7 de junho de 1872, em Villa d’Adige, província de Rovigo, Itália, e faleceu em 16 de maio 1948, em São Paulo, Brasil. Ao chegar ao nosso país, em 1888, fixou-se na cidade de Serra Negra, SP; em 1891, aceitou a grande naturalização instituída pelo Governo Provisório da República, liderado por Deodoro da Fonseca.
Intelectual autodidata, Quaglio não dispôs de títulos acadêmicos de qualquer espécie, foi nomeado, em 1895, Professor Primário após exames de ingresso no magistério público, sendo indicado para uma escola isolada, na cidade de Serra Negra; na seqüência, foi nomeado professor-adjunto do Grupo Escolar Luiz Leite, fixando-se, por fim, no Grupo Escolar Rangel Pestana, no município de Amparo, São Paulo.
Na virada do século, sairia do anonimato para projetar-se como autoridade científica nos meios educacionais paulistas. Assomava então, na cena cultural, um sujeito sumamente envolvido com a Pedologia, um saber filiado a uma extensa e controversa linhagem de conhecimento, empiricamente fundada no paralelismo psicofisiológico e inteiramente dedicado ao estudo sistemático e científico da criança. De fato, como sabemos, Pedologia, neologismo criado no século XIX por Oscar Chrisman (Barnes, 1932), constituía um domínio disciplinar que, ao lado de outros, antropologia pedagógica (Ugo Pizzoli), pedagogia científica (Maria Montessori), psicologia pedagógica(Edouard Claparède), pedotecnia (Ovide Decroly) e pedanálise (Oskar Pfister), nascera em resposta às pressões e urgências originadas no largo ciclo histórico que assistiu ao advento da escola de massas e sua obrigatoriedade como questão de Estado; com efeito, para Hobsbawm (1989, p.13): Em termos educacionais, portanto, a era de 1870 a 1914 foi, na maioria dos países europeus, acima de tudo a era da escola primária. De outra forma, precedido da observação infantil, do Child study movement e da antropologia pedagógica, o movimento pedológico irradiou-se pelos países europeus e extra-europeus.
De par com a concentração de capital produtivo e de massas humanas, dados constitutivos das sociedades alicerçadas no trabalho coletivo, os cultores da Pedologia, com sua confiança ilimitada nas ciências da natureza, tinham em mente a expansão das práticas positivas nos domínios da Educação, visando ao melhoramento do homem inserto numa ordem idealizada; nesse imaginário científico reconstrutor, a escola apareceria como causa primeira da sociedade.
Tal fato permite-nos afirmar que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a cultura psicopedagógica, nomeada vagamente de Educação Nova ou Escola ativa ou ainda Escola Nova, uma cultura assentada na compreensão do entrejogo do organismo e meio circundante, armou-se com o rigor epistemológico próprio da ciência analítica, isto é, ferramental de laboratório, observação dos fatos, manejo do método experimental, quantificação e generalização da experiência para, com isso, dar suporte empírico às decisões administrativas e, claro, prever e evitar possíveis comoções sociais, conforme bem indicam autores como Muel (1975) e Pinell (1977).
(idém)
Em estudo anterior, abordei e relevei a figura pioneira de Clemente Quaglio como teórico da pedologia enquanto ramo especializado da então Psicologia Experimental, finamente idealizado para solucionar as demandas originadas pela implantação da escola de massas, no Brasil (Monarcha, 1999). Já, em publicação recente, o historiador da Psicologia Carlo Trombetta (2002) não hesitou em situar Clemente Quaglio com um dos divulgatori e sostenitori dela pedologia colocando- o ao lado de figuras expressivas na cena mundial(…). Com efeito, tornado pedologista reconhecido, quer dizer, competente escrutinador antropológico, fisiológico e psicológico, Clemente Quaglio produziu uma obra científica revestida de utilidade prático-teórica, em décadas que assistiram à evolução crescente da matrícula escolar, ainda que insatisfatória, acompanhada de aumento dos gastos públicos. Esses fenômenos reforçaram ainda mais a necessidade de aumentar a eficiência da chamada machina escholar. Noutras palavras, a expressiva atuação prática e teórica de Clemente Quaglio é contemporânea do crescente interesse pela instrução popular e seus problemas e participação de professores primários no sistema intelectual, ora como teoristas de modelos de educação e propositores de métodos de ensino, ora como autores de literatura didática, ora, ainda, como administradores investidos de poder político.
Positivista por temperamento e convicção, porquanto movido por uma atitude científica em relação ao homem, à natureza e aos métodos de investigação, esse professor primário implantou, em 6 de maio 1909, nas dependências de uma escola de sua propriedade, situada na modesta cidade de Amparo, um dos primeiros gabinetes de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental no Brasil, acontecimento que, certamente, configurou o ponto inicial da voga ascendente de implantação de laboratórios anexos às escolas normais paulistas, como por exemplos, na Escola Normal da Praça e nas escolas normais de São Carlos, Itapetininga e Pirassununga. Ali deu vazão à atração pessoal pela pesquisa, ao promover estudos analíticos sobre a infância, com destaque para experiências sensório-motoras e surmenage, cujos resultados foram expostos à apreciação pública nas páginas da prestigiosa Revista de Ensino, órgão da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo.
Em face da repercussão das explorações antropológicas, fisiológicas e psicológicas, Oscar Thompson, diretor da Escola Normal da Praça e diretor- geral da Instrução Pública, um professor engajado com a renovação epistemológica da educação e do ensino – é dele o brado O futuro da pedagogia é scientifico (Thompson, 1914) -, nomeou Quaglio, na data de 9 de abril de 1909, para o cargo de Encarregado da Primeira Seção Administrativa da Diretoria Geral, com o firme propósito de instalar um gabinete na citada Escola Normal para efetuar medidas e avaliações antropológicas, fisiológicas e psicológicas das populações escolares.
Para a pedagogia que se queria realista, o desafio estava em desfazer o anonimato das paisagens humanas formadas por fisionomias desconhecidas – fenômeno próprio de aglomerações marcadas pela diversidade étnica, cultural e lingüística. Subitamente, Clemente Quaglio vinculou-se às vozes oficiais gestoras do aparelho escolar e adquiriu notoriedade.
(…)
No sistema científico, às voltas tanto com a compreensão da cognição humana e as relações enigmáticas do dualismo corpo-mente, quanto com a especialização do conhecimento em ramos autônomos dotados de objetos e métodos próprios, Clemente Quaglio defendia um programa extenso de ação: criação de asilos-escola (internatos) dotados de gabinetes de antropologia pedagógica e psicologia experimental e de cursos especiais anexos às escolas normais, destinados a formar professores para ensino dos anormais psíquicos. E foi dele, Quaglio, a decisão controversa de aplicar a escala métrica de inteligência de Binet-Simon a populações escolares da Capital, sem dúvida, primeira aplicação coletiva desse instrumento, em nosso país, cujos resultados constam no livro A solução do problema pedagógico social da educação da infância anormal de inteligência no Brasil (1913). A essa altura, já ocupava o cargo de Encarregado de Estudos do Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental da Escola Normal da Praça.
Creditamos a Clemente Quaglio a indicação do nome do médico- pedagogista italiano Ugo Pizzoli (1863-1934), para chefiar o Gabinete da Normal da Praça. Catedrático de Psicologia Pedagógica e Ciências Afins, na Universidade de Modena, diretor da Escola Normal Masculina da mesma cidade e outrora protegido do ministro da instrução, Giuseppe Sergi, Pizzoli fundara, em 1899, um pioneiro laboratório de pedagogia científica em Crevalcore, Itália. (2002; (…).
Em 1914 Altino Arantes, presidente do Estado de São Paulo, contratou Ugo Pizzoli, pelo período de seis meses, para ministrar cursos de alta cultura pedagógica, assim se dizia, para os diversos graus de hierarquia do magistério primário. Salvaguardado por Thompson e secundado por Quaglio, o apostolo della pedagogia scientifica ministrou um curso livre e popular de antropologia pedagógica e psicologia experimental para um grupo de professores do interior do Estado, e outro, de alta cultura pedagógica, para diretores de grupos e inspetores escolares.
(…)
Quanto a Clemente Quaglio, este permaneceu como encarregado do gabinete até 1930, ano de sua aposentadoria. Na mesma década, o laboratório, cuja aparelhagem fora artística e engenhosamente projetada por Pizzoli, foi incorporado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Todavia, vale lembrar que desde 1925, Manoel Bergström Lourenço Filho, professor de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal da Praça, já ocupava as instalações do referido gabinete. (…)
Proferiu conferências em espanhol, italiano, alemão e esperanto, em capitais culturais estrangeiras, a saber: Nova filosofia, em Lisboa, Nuova teoria della conoscenza em Buenos Aires, Was ist kultur? (Cos’é la cultura?), em Berlim, e Filosofia dell’Arte Pura ossia L’Arte in interiore homine, em Roma. Em sinal de reconhecimento à sua autoridade intelectual e científica, foi eleito conselheiro do Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura de São Paulo, sócio honorário da Biblioteca Partenopeu de História, Ciência, Letras e Arte “Ernesto Palumbo”, de Nápoles, e recebeu o título de Grande Officiale di Grazia Registrale da Ordem Militar de Santa Brígida, Svezia, Itália.
Por fim, as realizações de Clemente Quaglio concretizaram-se em circunstâncias intelectualmente efervescentes e socialmente instáveis, protagonizadas por sujeitos históricos dotados de exuberante consciência social e de ruptura. Em síntese: a totalidade de sua obra explicita uma produção original, ampla e interdisciplinar, concretizada por um professor primário autodidata, porém em conexão aberta com as verdades conquistadas pela ciência experimental.
* Bol. – Acad. Paul. Psicol. v.27 n.2 São Paulo dez. 2007